terça-feira, 5 de abril de 2016

"Emparedada da Rua Nova" (Carneiro Vilela)

Ano: 2013 / Páginas: 518
Idioma: português 
Editora: CEPE
Recife é a boatolândia brasileira. Qualquer mero boato que passa ileso por um cidadão comum, pode virar lenda urbana ou profecia para os recifenses (pesquise sobre a "perna cabeluda", a origem do nome da Praça Chora Menino ou sobre uma tal enchente que nunca aconteceu, mas levou a cidade à loucura).

Para escrever "A Emparedada da Rua Nova", Carneiro Vilela, muito influenciado por um movimento positivo-cientificista,  se utiliza de documentos reais (a notícia que estampa as primeiras páginas do livro sobre o cadáver no Engenho Suaçuna, é verdadeira, por exemplo). Além disso, um narrador onisciente vai dispor os fatos "tal como alguém lhe contou". Por estas e outras razões, não se pode dizer, até hoje, se o caso da "emparedada" é verídico ou ficcional. Qualquer que seja a resposta, a história já faz parte, grosso modo, do inconsciente coletivo dos recifenses.


Trata-se de um romance histórico, publicado originalmente na forma de folhetim, entre os anos de 1909 e 1912. Isso explica os capítulos curtos e abundantes, bem como,  a superposição e cruzamento de enredos que caracterizam a uma narrativa não linear, cheia de idas, vindas e retomadas.
No entanto, ao contrário da grande parte das obras folhetinescas, que se aproveitam do clímax para manter o leitor ávido pelas próximas páginas, Vilela se diferencia. Segundo Anco Márcio T. de Oliveira, que prefacia esta edição, Vilela não cria "falsos reconhecimentos" ou "peripécias que em nada resultam no desenvolvimento da ação" apenas para entreter. Mesmo que "cada capítulo seja estruturado dentro da dialética entre tensão e desenlace da ação, todos eles trazem informações que levam o leitor a desvelar os fios dos vários enredos que compõem a narrativa" (p. 13). Essa forma de escrever dinamiza e instiga a leitura. 

A história se desenvolve no ano de 1864. O leitor é posto, desde as primeiras passagens do livro, à condição de detetive, o traz um ar de romance policial, nesta obra que começa e termina em crime. Outro eixo narrativo, como muitas pessoas já sabem, coloca em cena uma trama amorosa complexa, recortada por Leandro Dantas, um Don Juan, de origens pouco ou nada conhecidas, responsável pelos suspiros das moças da capital Pernambucana. Leandro mantém relacionamentos clandestinos com três mulheres da alta sociedade. Dentre elas, duas são casadas. O resultado será trágico.
"Como ré confessa de crime torpe e voluntário, seu orgulho estava abatido e ela entrava na ordem infinita dessas mulheres a quem se respeita porque são mulheres, mas ninguém solicita porque já não são donzelas" ( p. 495) 
Rua Nova no Séc. XIX 
Os personagens são bem esféricos. Há um mergulho na mente de cada um deles, com apurada análise psicológica. O enfoque, em toda obra, é a moral corrompida da cidade do Recife, a hipocrisia, a corrupção. Nenhum dos personagens determinantes permanece íntegro até o fim do livro. Apesar disso, a obra não é marcada por um maniqueísmo simplório e artificial. Me parece que Carneiro Vilela, procura mostrar como a humanidade está sempre lutando para ajustar as emoções à razão, à ética. E, como se não pudesse obter êxito, terminam por buscar se favorecer de um mundo de aparências e falsa honradez. 
"A aristocracia e o dinheiro são bandeiras que cobrem toda carga. (...) É a moralidade da justiça social" (p. 222)
Vilela é debochado e irônico, concentrando suas críticas na moral católica, sobretudo no que tange a educação. Estando situado no movimento naturalista, o comportamento é encarado como fruto da educação falha e infantil das escolas religiosas. O anticlericalismo é evidenciado constantemente. Por outro lado, ganha destaque o instinto, as traições, o pecado. O lado animalesco do homem é exposto sem romantizações.
"Sacerdotes fazem da religião um fanatismo; da moral, um estigma; da verdade, um mito; da consciência, uma futilidade; da razão, um monstro; do coração, uma besta; de Cristo, um mercador do templo; e de Deus, um capadócio"  (p. 217)
Ler autores nacionais, sobretudo da sua cidade, é uma experiência tão interessante e subestimada. A minuciosidade com que Carneiro Vilela descreve a cultura popular, festividades típicas, o cotidiano, preconceitos locais, formas e trejeitos do falar pernambucano em muitas das suas variações, me proporcionou não só um novo relacionamento com minha cidade, mas também me deu um panorama geral do Recife no século XIX.  "A Emparedada da Rua Nova" me encantou tanto quanto os frevos de Capiba, os poemas de Bandeira e João Cabral e o manguebeat de Science. É uma oportunidade única de fundir a literatura com o que estamos habituados a ver todos os dias. 

Edição _________________











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