quinta-feira, 31 de março de 2016

"A Desumanização" (Valter Hugo Mãe)

Ano: 2014 / Páginas: 160
Idioma: português 
Editora: Cosac Naify
A ligação entre irmãos gêmeos sempre esteve envolta por mistérios e lendas. Até que ponto uma intensa ligação emocional pode se tornar física?  

Em "A desumanização", acompanhamos a vida de Halla, logo após sua irmã gêmea Sigridur falecer. A segunda era a mais ativa, confiante e sonhadora. Após a sua morte, Halla é a metade de um inteiro, a irmã "menos morta".  

O ambiente inóspito e encantador dos fiordes islandeses se alinha com esta narrativa bela e assustadora. Triste, enfim. Em uma vila de pescadores, todos são velhos, as pessoas são tão frias quanto o clima. Com 11 anos, Halla é a criança que sobrou. Está sozinha em todos os sentidos, de todas maneiras possíveis.

Os personagens desenvolvem sua forma lidar com a dor. A mãe de Halla com a autoflagelação. Mas é com o pai que ela terá os melhores diálogos sobre poesia, livro e as palavras. Enquanto os seus sentimentos para com a mãe oscilam entre pena e ódio, o pai parece agir como um sopro de vida na secura afetiva que a cerca.

Ela termina se envolvendo com Einar, um homem adulto, mais velho que seu pai , mas que possui mentalidade de uma criança. Os sentimentos de Halla seguem a trilha do asco, à compaixão até um amor. 
"Acontecia gostar dele. De gostar muito dele. E por cada instante me deixava levar pela ideia boa de partilhar e perdoar-me por ter crescido a partir de tanta insignificância. Redimia-me lentamente" (p.116)

Foto: Islândia Brasil
Toda a narrativa, melancolicamente, vai girar nos temas centrais: morte, solidão e a limitação humana. A morte é ressignificada incessantemente, seja por interpretações míticas, religiosas ou espirituais (dicotomia corpo-alma).

A prosa poética de Valter Hugo encobre uma história bruta. Cortante. O lirismo do autor se combina com o que Miguel Real chama de abjeccionismo:
"O lirismo não se harmoniza com o abjeccionismo. Aquele que pressupõe uma linguagem poética e sentimental; este uma linguagem crua, violenta e horrorizante; aquele, um léxico versado sobre paixão; este, um léxico vil, repelente, ignóbil e desprezível. O milagre literário de "A desumanização" (2013) de Valter Hugo Mãe, reside justamente no paradoxo de conseguir cruzar e harmonizar com sucesso estético estes dois tipos de linguagem" (clique aqui para ver a crítica integralmente)
Halla herda o olhar poético do pai, mas questiona a limitação da linguagem. "As letras da palavra cavalo não galopam" (p.29). A realidade pertence a um domínio diferente das experiencias sensoriais e, sobretudo, do domínio das palavras, das explicações. Estamos presos na linguagem, não conseguimos transpor esta barreira, pois os sentimentos e coisas só existem por meio de distinções linguísticas. O que falamos não toca o mundo material.
"talvez o nosso desejo de falar seja só um modo menos desenvolvido de encarar a evidência de existir" (p.29) 
Permeia a narração um tom mítico, principalmente nos entendimentos de Halla sobre o mundo, sobre Deus, morte, os fiordes, a Islândia, menstruação, o sexo ("a boca de Deus", "flores de sangue" "criança plantada"). Estas abordagens complementam a intensa plasticidade da obra. "A desumanização" é um livro para se assistir, com belas composições. 
"Talvez não sabemos o que é belo neste preciso momento. Podemos estar absolutamente enganados acerca de tudo quanto gostamos" (p. 27)
Em suma, é um livro triste, muito triste, e infinitamente belo. Causa uma inquietação, como se fosse pesado demais pra continuar. Mas sentimos, intimamente, uma identificação com a resiliência de Halla. Nos rendemos à desumanização, que nas palavras do próprio Valter Hugo significa "perder sensibilidade, robustecer, não permitir a vulnerabilidade para persistir sendo gente. Para não perecer."

Foi uma experiência incrível, meu primeiro livro do autor, mas, com certeza, não o último. 


Edição_______________










2 comentários:

  1. Vim aqui te visitar, e claro que não iria deixar de ver suas considerações sobre A Desumanização, o mais belo e triste livro que li até hoje.

    Obs: Adorando seu blog

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  2. Ai! Que coisa maravilhosa, fico muito feliz de saber. Vamos manter contato pra falar mais sobre literatura <3

    Beijo!

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