Quem nunca ouviu falar de Lolita? Ou ninfeta? O romance é revisitado constantemente, em livros e, sobretudo, nas telenovelas. As "Lolitas" das telenovelas (mulheres jovens e sensuais que gostam de homens com idades mais avançadas) são resultado do apoderamento do feminino para a criação de uma imagem plana, fútil e capitalista, que culmina, sempre, na comercialização do corpo da mulher. O que acontece é uma personificação da visão machista e dominadora, que tende a mostrar "tudo aquilo que um homem pode esperar de uma mulher", malícia e inocência juntas num só ser. Elas são provocantes, sexualmente insaciáveis, infantis, tentadoras. Tudo, menos humanas.
Acontece que no livro de Nabokov, Dolores Haze, uma garota de 12 anos, é apenas um objeto de desejo do protagonista, um desejo talvez nunca, verdadeiramente, consumado. A Lolita do livro é uma criação, nunca existiu na realidade material, é uma obra mental de Humbert. Isto fica muito claro durante todo o livro, principalmente nas partes finais, em que o próprio personagem, epifanicamente, acorda de seu delírio. Dolores não é a Lolita descrita, porque Dolores existe e Lolita é apenas a figura que Humbert projeta sobre ela. Ao contrário destas (re)produções
televisivas, o livro tem contexto. Está claro para o leitor que Dolores não é tal qual o narrador descreve. Portanto a imagem publicitária "lolita" é uma versão barata e infame da idealização de Humbert.
Sobre o Livro e Suas Polêmicas
"Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta. Era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly, na escola. Era Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços era sempre Lolita."
Há uma tendência natural do homem enquadrar tudo que vê em seus princípios morais. Me parece hipocrisia que as pessoas fiquem tão abismadas ou escandalizadas com a temática deste livro. Nem quero me ater tanto a esta questão, mas um quarentão (na verdade, Humbert tem 35) com uma menina de 12 anos não é incomum na história humana, até hoje temos países que casam meninas de 10 anos. Não estou dizendo que sou conivente com estas práticas, apenas não me surpreendem. Aposto que se a construção narrativa de Nabokov fosse diferente as pessoas estariam dizendo que "amor não tem idade". As questões que se destacam no livro, tem mais a ver com dominação, abusos e loucura, que com idades.
“Humbert Humbert não é libertino nem sensual: é apenas obcecado. Sua história é escandalosa, antes de tudo, porque ele a sente e a apresenta assim, sublinhando, a cada passo, sua ‘demência’ e sua ‘monstruosidade’ (são suas palavras). É a consciência transgressora do protagonista que confere à sua aventura a índole malsã e moralmente inaceitável, mais que a idade da sua vítima (doze anos e sete meses), que, no final das contas, é apenas um ano mais jovem que a Julieta de Shakespeare” (Mário Vargas Llosa)
Segundo Oscar Wilde, não existem livros morais ou imorais, mas sim os bem e mau escritos. Então, tentem não fazer uma leitura tão moralista e tão politicamente correta da obra, se permitam vivenciar os conflitos internos do narrador e sua intensa obsessão. Vejo pessoas dizendo que o livro é uma apologia à pedofilia, como isso me entristece! (pra começar, pedofilia, em si, não é crime). Se começarmos a pincelar quais os livros adequados ou não para nossa geração, não demora muito para queimarmos todos os clássicos da literatura.
Afinal, o que é mais importante: o que se diz ou como se diz? A arte do livro "Lolita" é, definitivamente, o estilo de Nabokov (um russo escrevendo em língua inglesa). Texto desconexo e entrecortado, é como o diário de um louco. A estética é primorosa, não há como negar.
O conflito interno de Humbert é constante, há o desejo, o desespero e, sobretudo, o desprezo por si mesmo. Ele oscila em momentos de fantasia e sobriedade, Lolita é seu paraíso e sua ruína. Humbert está tão enfiado em seu próprio delírio animalesco que vive em um mundo paralelo, nada é caro demais, longe demais, terrível, obscuro demais se ele tiver Lolita (no sentido de ter mesmo, de possuir, de apropriar-se), da mesma forma que ele não enxerga o que realmente está acontecendo.
A escrita é maravilhosa, mas é pesada. Não é um livro fluido e fácil de se ler, o famoso "arrodeia, arrodeia pra dizer uma besteira" (para quem não mora no Nordeste, arrodeio significa dar a volta ou escolher o caminho mais longo), rs. É redundante e cansativo. Em alguns momentos foi um sacrifício passar por cima da mesmice, era como se a história não evoluísse. Foi uma leitura que demorou, que me custou paciência e dedicação. Mas, apesar de trabalhoso, gostei tanto do final que terminei me apaixonando mesmo. Achei autêntico. Adorei o percurso psicológico que Nabokov escolhe para Humbert e o destino que escolhe para Lolita.
"Entretanto, ai de mim, fui incapaz de transcender o fato simples e humano de que qualquer que fosse o consolo espiritual que eu pudesse encontrar, ou por mais que me acenassem com a promessa de eternidades litofânicas, nada poderia levar minha Lolita a esquecer a perversa luxúria que eu lhe impingira"
"Lolita" é uma história mais de dor que de amor. Apesar de partimos da perspectiva do narrador, não é difícil ver que toda adoração de Humbert oculta um desejo de possessão. A dominação que ele, cegamente, exerce sobre Dolores é evidente, ainda que ele pinte sua imagem de maneira altamente sexualizada (Lolita, a ninfeta). O fato de não lhe ter tirado a virgindade parece que justifica seus abusos constantes, que levam o leitor à posição de voyeur. Dolores é vítima de Humbert, Humbert é vítima de si mesmo.
Ainda que as remissões à Lolita inundem a narrativa, talvez ela não seja o verdadeiro eixo narrativo. Na verdade, como diria Freud, "quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo".
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