sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

"O Coração das Trevas" (Joseph Conrad)

Edição: 1
Editora: Abril
ISBN: 9788579710261
Ano: 2010
Páginas: 149
Tradutor: Celso M. Paciornik 

"O silêncio da terra penetrava no próprio coração da gente - seu mistério, sua grandeza, a espantosa realidade de sua vida oculta"

Quando comprei "Coração das Trevas" jamais poderia ter imaginado a preciosidade que é este livro. Sim, precioso. Em bem da verdade, devo dizer que o livro é bem denso, mas também, o que se esperar de um livro multifacetado como este? Ainda mais quando o pano de fundo da história é justamente a colonização europeia na África?

Pois bem, a narrativa começa por um tripulante a bordo de um iate de cruzeiro no estuário do Tâmisa, mas a história se desenrola com as memórias contadas por Marlow, seu interlocutor. Ou seja, o livro abriga a típica "história dentro da história". Sendo assim, toda a obra é composta entre aspas, por assim dizer.

Marlow, já conhecido por suas histórias, descreve, então, como foi parar nos arredores do Rio Congo e o que encontrou por lá. Desde pequeno, já era fascinado por este rio, que lhe parecia um "espaço vazio com um mistério encantador - uma mancha branca onde um garoto podia alimentar sonhos de grandeza". Mas, já não era mais assim. O espaço vazio havia se transformado em "um lugar de trevas".
O livro se divide em três partes, a primeira se refere a contratação de Marlow por uma companhia continental de coleta de marfim e a sua chegada à África. Conrad é muito descritivo e de linguagem metafórica, quase poética. Não só nesta primeira parte mas em toda a narrativa a natureza, a selva, é tomada com um ar espiritual, místico e misterioso. A selva tem voz, tem braços, pernas e olhos, muitos olhos, enfim, tem uma personalidade. Há aqui um rompimento muito visível com a ideia de "mãe natureza", uma vez que a mesma é encarada como algo desconhecido e perigoso, algo que poderia entrar em você, toda essa escuridão, as sombras, as trevas.

Aliás, a ideia de "mãe natureza" parece ser algo mais moderno, não é mesmo? O homem sempre esteve em uma relação de dominação e medo com o natureza. Hoje, temos uma vida quase independente dela, então há a difusão dessa imagem acolhedora, tranquilizadora. No entanto, imagine nos tempos coloniais, o primeiros contatos dos ingleses com a selva imaculada, hermética, desconhecida. Em contraponto temos os "selvagens" perfeitamente adaptados, conhecedores daquele ambiente completamente hostil para os forasteiros. Daí também surge o estranhamento tão estudado pelas ciências sociais. 
"A Terra parecia irreal. Estávamos acostumados a observar a forma agrilhoada de um monstro conquistado, mas ali... ali você podia ver uma coisa monstruosa e livre. Era irreal, e os homens eram... Não, eles não eram inumanos. Bem, vocês sabem, isso era o pior de tudo - essa suspeita de eles não serem inumanos. Ela chegava aos poucos. Eles uivavam e pulavam, e rodopiavam, e faziam caretas medonhas; mas o que apavorava era exatamente a humanidade deles"

A narrativa é permeada por uma ambiguidade e crítica muito forte em relação ao que é selvagem e o que é civilizado. Os africanos escravizados pela companhia são sempre caveiras ambulantes, mais que sofridas. Enquanto que os selvagens, tão misteriosos, compõem um cenário de encantamento/estranhamento ("o bom selvagem"/ "o mau selvagem") para Marlow. 

As duas últimas partes se concentram mais em Kurtz, um ícone local, que também trabalha na companhia, sendo aquele que mais extrai marfim na região. A grande questão é os métodos utilizados por ele, que contrariam os interesses da companhia. 

Assim como Marlow,  leitor é levado a pensar em Kurtz como uma voz, nunca como uma pessoa, nunca com uma imagem, sempre uma voz. Não é para menos, o personagem só aparece nas partes finais do livro, mas a todo o momento se escuta sobre ele, sempre o tratando como um deus, um ser de outro mundo. Para chegar até Kurtz, Marlow viaja ao longo do Rio Congo, sendo surpreendido por vários obstáculos no meio do caminho.
"Vocês não podem entender. Como poderiam? - com a sólida calçada por baixo dos pés, cercados de vizinhos amáveis prontos para confortá-los ou cair-lhes em cima [...] - como podem imaginar a que particular região dos tempos primitivos os pés desimpedidos de um homem podem levá-lo pelo caminho da solidão"

Kurtz arremata toda a ideia central de Conrad, na minha visão, se colocando como crítica viva aos métodos da companhia, mas, principalmente, contra a visão de mundo civilizado em um meio selvagem. Kurtz não é um deus, é um ser humano. Finalmente, o livro parece questionar sobre o que é moral quando nos deparamos com uma cultura diferente. 

A obra é um pouco densa, mas levando em consideração o ano de publicação, mais ou menos 1899, é bem acessível. É bom prestar atenção na leitura para não perder pontos essenciais e apreender o caráter sugestivo deste livro, que deixa muitas coisas nas estrelinhas. Para os amantes de antropologia, este livro é obrigatório, sem dúvidas. 

Edição _________________









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